Na esquina da Rua Espírito Santo com a Avenida Álvares Cabral em Belo Horizonte mora Lúcia Matta Machado. Sua idade ela prefere omitir: “é o charme de toda mulher”, diz. Ela vive no bairro Funcionários, segundo metro quadrado mais rico da cidade. Sua casa se difere de todas as outras, e não é pelo tamanho ou arquitetura, ela mora na rua, em sua “mansão de papelão”. Seus cães são sua companhia: Susie, Pirata, Piratinha, Mel, Gracie, Chacal e Agregado são a garantia de felicidade e bom humor. Além desses, lembra saudosa do Pequeno Vagabundo, um dos primeiros a chegar à família. Foi roubado e morto durante a Copa das Confederações.
Lúcia vive há cinco anos na rua, e o motivo, segundo ela, foi a ganância familiar. Nascida em “berço de ouro”, sentiu na pele o descrédito que o dinheiro pode trazer. Após a morte da mãe, os conflitos familiares que se instauraram tornaram a convivência insustentável. Recorreu a um albergue, e ali conheceu as drogas: “Todo morador de rua bebe ou usa drogas. Isso traz um alívio dos olhares preconceituosos que atormentam… entristecem. A gente tá deitado aqui, as pessoas te olham e, chapada, você não vê porra nenhuma. Dói, é preconceito de todas as formas”, diz. Outro motivo é a fome: “Hoje é quarta-feira? Eu não almocei até hoje. Dormir com fome é foda. Tem que ter uma válvula de escape, alguma coisa. Se não num ‘guenta’”, conta.
Quando falamos de moradores de rua falamos de exclusão, de olhos que se recusam a ver. Mas são esses olhos que os ferem quando os observam. Então a questão deixa de ser o não enxergar e passa a ser de que forma enxergamos. Porque de fato todos veem.
Atrevo-me a dizer que escamamos nossos olhos porque diante de um morador de rua nossa fragilidade se expõe. E essa exposição revela que o mundo que criamos e lutamos para manter de pé pode desmoronar a qualquer momento. Desta forma, erguemos paredes que os lançam à margem, já que ali é mais fácil ignorar. Ignoramos, não porque são diferentes, mas por serem semelhantes demais. Exclusos, criam suas casas, mas por serem de papelões, cobertores ou apenas imaginárias, apontamos nossos dedos e olhares. Dizemos que atrapalham nossa via e recolhemos seus poucos pertences por apenas um motivo: o confronto da fragilidade da vida.
Quando Lúcia viu seu mundo se desdobrando por um caminho que não imaginava, conta que apesar de tudo não deixou seus dias se perderem. “Continuei vivendo minha vida, mudei de casa, mas não deixei de viver”, diz. Ao mesmo tempo, lembra-se de tudo o que aprendeu e tem prazer em praticar. “Eu sou uma madame disfarçada de maloqueira, não posso fugir da minha essência”, afirma a moradora de rua que viaja o mundo pelos livros da Biblioteca Municipal de BH.
Encarando o dia a dia como uma peregrinação, Lúcia vê sua estadia na rua como um processo de aprendizado: “tô aqui porque Ele (Deus) está me ensinando a ser humilde”. Eu a questiono sobre o que é humildade, ela responde: “humildade?… humildade é dividir o pão. Porque quem está rua tem fome”. Respira e continua: “também é ser humano, ser gente. E isso começa por um bom dia, independente do quanto você tem no bolso ou da roupa que você veste”. Depois canta:
Esse seu olhar, quando encontra os meus,
fala de um preconceito que eu jamais imaginei.
Minha roupa suja te assusta,
me desculpa, me desculpa.
Quando é que você vai virar gente,
sem esse preconceito de uma simples roupa suja?
Eu moro na rua, tenho motivo…
A saudade encontrou lugar em nossa conversa e Lúcia se emociona, lembra-se das tardes que passava com a família e das canções da jovem guarda que cantavam. “Dói cara, sinto falta pra caramba. Essas músicas são a cara de um domingo de tarde tomando caipirinha”, diz sorrindo. Além disso, fala dos desejos, das coisas que há tempos não faz e que eram rotina: “sinto falta do café com leite e do pão. Mas quero sentar numa mesa e comer. Tem que ser numa mesa!”.
Seus desejos são simples e, como uma reza, clama no meio da conversa: “tudo que eu peço é misericórdia pra mim, meus cachorros e família”. Fala do mundo difícil, dos homens maus e do perigo que enfrenta todos os dias. “Quem tá na rua, tá na pista. A pista é livre, eu sou uma pessoa livre, porém sem um pingo de privacidade. Corro risco 24h por 48h”.
A trajetória de um morador de rua escancara nosso medo de ser descoberto em meio à multidão. Medo que se mascara com os olhares que visam expor a fraqueza do outro, a roupa suja que incomoda e, assim, tirar o foco das nossas limitações.
No fim da nossa conversa Lúcia pede um wafer de chocolate, um amigo concede o pedido e nos despedimos. Ela entra comendo na sua mansão de papelão e eu sigo para minha casa de tijolos. Protegido em meu quarto, suas palavras ecoam e me encontro exposto. Confrontado com a realidade que conheci, anseio um olhar que ama, que sonha e fantasia. Vou dormir querendo ser gente!