Quando um por cento é o suficiente para viver

A rotina de três meninos com câncer e seu entusiasmo pela vida

Subindo a escadaria do Hospital da Baleia, em Belo Horizonte (MG), para chegar a Ala 6 da oncologia infantil, fui reparando os rostos que passavam por mim. Alguns pareciam transmitir a serenidade da exuberante área verde ao redor do hospital, outros estavam anestesiados pela rotina, alguns perplexos ou tristes, estes me remetiam ao nome do bairro, Saudade. Mas ao entrar no quarto dos leitos 611 a 615 me deparei com sorrisos. Logo soube que o lugar traria histórias de pequenos grandes vencedores e, durante uma semana, acompanhei a rotina de três garotos na luta pela vida.

João Vitor Oliveira Santana é um desses adolescentes enormes que qualquer adulto ao vê-lo, diz o famoso jargão: “ta grande pra idade, hein”. Com 1,95 centímetros de altura, o garoto de 53 quilos carrega consigo uma coragem inigualável que só encontramos naqueles que entendem que, para viver, basta respirar. João ama automóveis e frequenta desde dos 11 anos de idade a oficina mecânica do padrasto. Aprendeu cedo as artimanhas de um bom mecânico e se orgulha ao dizer que, com 15 anos, já sabe montar e desmontar um motor.

A notícia do tumor em seu braço direito chegou em janeiro de 2014, mas antes disso, alguns problemas de saúde já tinham feito parte de seu histórico. Em 2012, João recebeu o diagnóstico de “Cisto Sebáceo”, seguido da informação de que aquela protuberância, abaixo da pele de seu braço, era apenas uma questão estética. Acometido por um berne no mesmo ano, que o levou a uma infecção generalizada, João ainda teve que lidar com um erro na enfermaria. O garoto alérgico a Dipirona recebeu uma dose da medicação, que o fez ter um choque anafilático, reação alérgica que afeta o corpo todo, provoca inchaço e obstrução de vias aéreas, hipotensão e pode ser fatal. Após o incidente, o cisto sebáceo desapareceu.

Sua fiel escudeira é sua mãe,Viviane de Oliveira dos Santos, que tenta explanar da melhor forma possível o drama e as dores intensas que o filho sentia no braço. Também explica sobre como a família, que antes vivia em Martinho Campos (MG), foi parar em Sete Lagoas (MG), na casa do Sr. Francisco Cassimiro de Oliveira e da Sra. Sonia Maria Pacheco de Oliveira, avós maternos do João, para facilitar o tratamento do filho. Fala da dor do marido ao fechar sua oficina e de como a renda da família caiu consideravelmente após isso. Depois de tudo, faz uma síntese, talvez sem saber, mas que define em poucas palavras o que motivou tudo isso: “Perrengue a gente passa, mas doença é diferente. Não escolhemos o destino dos filhos, quem dera, tirava dele e passava pra mim. A gente sempre pensa que amanhã será diferente. A doença reuniu minha família, a força dele e o empenho pra viver nos motiva”.

Guerreiro é de Abre Campo, cidade do interior de Minas Gerais, dessas que para tudo que acontece tem uma explicação sempre bem dada pelo povo da roça. Seu nome, na verdade, é Randel Prata Pereira, 13 anos, irmão caçula que nasceu três anos depois dos gêmeos. Começou sua trajetória no Hospital da Baleia aos dois anos de idade, e, devido à sua força, ganhou o apelido que é digno de ter. Randel é o Guerreiro.

Ainda criança, ele se deparou com a burocracia brasileira. Diagnosticado com câncer no fígado aos dois anos de idade, foi encaminhado com urgência à Quimioterapia, mas, para receber o remédio do governo, precisava de um CPF, cujo prazo de entrega seria em 60 dias. Difícil esperar este prazo quando se corre contra o tempo. Após muita briga, conseguiram liberar o documento em 15 dias. Sua infância foi marcada por três procedimentos cirúrgicos, que, somados ao abalo emocional e à quimioterapia, trouxeram danos à fala e dificuldades para andar, hoje superados. Mesmo desenganado pelos médicos aos quatro anos, Guerreiro venceu a doença, o tumor se cristalizou.

Onze anos se passaram, a doença retornou. Randel está com metástase, mas sua força pela vida continua avassaladora. Pergunto a ele de onde ela vem. Ele me responde: “A família me da força para resistir. Família com a gente no hospital é outra coisa, dá força pra gente. Quando não é família, é muito difícil. Ontem mesmo, a mulher que estava aqui não dava nem a mão pra eu segurar. Quando é família é bem melhor”.

Durante o tratamento, Guerreiro leva mais um golpe da vida: sua mãe é internada, diagnosticada com lúpus. A doença a limita e provoca outras complicações, paralisando algumas partes do corpo. Ele me fala dela, me mostra fotos e diz com um sorriso no rosto: “Ela é boa, parece muito comigo, quando me olho no espelho lembro dela. Amor de mãe é outra coisa, sorri novamente e diz: ela tem muito amor”.

Arthur Rezende da Silva tem apenas dois anos. Filho de Verônica Cristina da Silva (32) descobriu cedo como reinventar a vida, e uma das coisas que aprendeu foi expressar seu amor pelos olhos. Com um ano e quatro meses, perdeu parcialmente a força e a sensibilidade na perna direita, o que provocava várias quedas. Os exames diagnosticaram tumor cerebral.

Devido a complicações no quadro respiratório, a cirurgia pediátrica indicou que fosse feito uma traqueostomia que, em termos mais populares, é uma “abertura na garganta para permitir a passagem de ar”. Desde então, Arthur não fala. Diante disso, se comunica com os olhos e com as mãos. Foi à forma que encontrou para expressar seus descontentamentos, amor, pedidos e gratidão.

Durante o tempo que convivi com Arthur, aprendi porque dizem que “os olhos são a janela da alma”. Seu olhar revela muitas coisas e suas piscadas, me atrevo a dizer, são como gargalhadas.

O que esses três garotos tem em comum? O amor pela vida.

Com a alimentação restrita, a comida do hospital se torna um dilema. Todos reclamam. “Parece uma lavagem” diz João. Do outro lado do quarto, Guerreiro fala: “esses dias a almôndega quebrou o garfo”, enquanto isso Arthur se nega a comer. Logo, até os acompanhantes começam a reclamar. Segundo a nutricionista do hospital Helena Moos, a fama de que toda comida de hospital é ruim é um dos fatores que influenciam. “Os próprios familiares já chegam com esta primeira impressão. Com a própria mãe afirmando que a alimentação é ruim, a criança se recusa a aceitar a alimentação antes mesmo de recebê-la”. Helena explica que as crianças da oncologia tem uma dieta para imunossuprimidos, ou seja, quando a eficiência do sistema imunológico está reduzida, no caso deles, devido à quimioterapia. “O momento da hospitalização é muito delicado. Com a quimioterapia, os pacientes não toleram a alimentação, nem mesmo a habitual”. Para amenizar o problema, o hospital busca a parceria dos familiares. “Com os pais se alimentando das refeições que oferecemos, os filhos praticam o mesmo”, comenta a nutricionista, que busca variar o cardápio na medida do possível.

A Neurocientista e Psicóloga do Hospital da Baleia, Lorena Maciel Oliveira (30), fala sobre o que motiva esses meninos para vida e como é lidar com a rotina na oncologia. ”Viver é muito simples, porque a gente já acorda vivo, porque a gente acorda respirando e isso é vida. A gente acha que viver é algo grandioso, mas é bem menor que isso. Quando esses meninos estão felizes aqui, é porque estão vivendo o máximo que eles podem da vida que eles têm. O que vem daqui a 15, 20 anos, é expectativa”, diz Lorena. A respeito do dia a dia, ela fala: “As pessoas dizem que a gente se acostuma a lidar com a dor, mas eu acho esse termo pejorativo. Ninguém se acostuma a lidar com o sofrimento, nem com a morte. Eu particularmente uso uma estratégia interna, busco manter uma chama de vida em mim para que eu consiga transitar no sofrimento do outro e sair ilesa dentro da minha essência de vida”, explica.

Os dias que vivi com os três garotos foram de grande aprendizado. Durante nosso tempo juntos, mesmo com possibilidade de amputar o braço, João disse: “se eu tivesse um por cento de chance de vida e 99% de chances de morrer, seguiria lutando.” A frase acabou virando o lema de todos. Eles entenderam que a única certeza que temos é a morte. Mas a vida, essa podemos reinventar a todo instante.

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